O saudita Osama bin Laden, provável mentor de uma tragédia anunciada, é a encarnação do mal para os americanos. Mas boa parte do mundo muçulmano o considera um ídolo
Foto: Divulgação
BIN LADEN, O LÍDER
A organização do terrorista mantém células
A organização do terrorista mantém células
em dezenas de países e conta com 3 000 militantes
dispostos a tudo
Em 1995, agentes americanos capturaram no Paquistão o terrorista kuwaitiano Ramzi Yousef, apontado como o idealizador do atentado a bomba ao World Trade Center dois anos antes, que resultou na morte de seis pessoas. Ao chegar aos Estados Unidos, Yousef foi vendado e colocado em um helicóptero que o levaria de volta a Nova York, onde seria interrogado e formalmente indiciado pelo crime que cometera. No momento em que as torres gêmeas do World Trade Center surgiram, brilhantes, no horizonte noturno, um dos policiais tirou a venda do terrorista e disse: "Olhe lá, elas ainda estão de pé". Yousef respondeu: "Elas não estariam se eu tivesse dinheiro e explosivos suficientes". O episódio, também usado para abrir uma reportagem recente da revista Newsweek, está relatado originalmente no volume The New Jackals: Ramzi Yousef, Osama bin Laden and the Future of Terrorism (Os Novos Chacais: Ramzi Yousef, Osama bin Laden e o Futuro do Terrorismo), do jornalista inglês Simon Reeve, especialista no assunto. Esse e outro livro, a biografia Bin Laden – The Man who Declared War on America (O Homem que Declarou Guerra à América), escrita por Yossef Bodansky, estudioso do terrorismo há 25 anos, tornaram-se best-sellers nos Estados Unidos na semana passada. Ambos foram lançados em 1999, mas ninguém lhes deu muita atenção na época. Foi um erro. A leitura desses livros transforma a impressão em certeza: os atentados em Nova York e Washington eram uma tragédia anunciada. Ramzi Yousef não tinha os meios para pôr abaixo o World Trade Center, mas o saudita Osama bin Laden, sim. Não foi precipitado apontá-lo na primeira hora como o provável cérebro por trás da infâmia do dia 11 de setembro. Desde meados da década de 90, os serviços secretos do Ocidente já formulavam a hipótese de que ele planejava uma ação grandiosa em território americano. Ensaios não faltaram. Em 1998, quando o então presidente Bill Clinton mandou que a Marinha bombardeasse o Sudão e o Afeganistão, em represália aos ataques às embaixadas americanas no Quênia e na Tanzânia, que deixaram um saldo de 224 mortos, o alvo principal era Osama bin Laden. Oitenta mísseis Tomahawk atingiram os dois países, mas nenhum infligiu sequer um arranhão a Laden. Numa rede de rádio clandestina, ele comemorou: "Graças a Alá, estou vivo!". Depois disso, uma estranha letargia parece ter tomado conta da agência de informação americana, a CIA, e do FBI, a polícia federal dos Estados Unidos. Quanto a Laden, embrenhou-se ainda mais nas cavernas escavadas nas montanhas do Afeganistão, de onde continuou a coordenar seu bando.
Fotos: AP
BIN LADEN, O HERÓI
Assim como a do guerrilheiro comunista Che Guevara,
Assim como a do guerrilheiro comunista Che Guevara,
a imagem do terrorista saudita está estampada em camisetas,
pôsteres e folhetos, que celebram os seus "feitos".
No pôster acima à esquerda, Bin Laden é chamado de "Guerreiro do Islã"
Milhões de pessoas ficaram chocadas com as imagens de alguns grupos muçulmanos comemorando os ataques ao World Trade Center e ao Pentágono. Outro espanto foi verificar que, em diversos países do Oriente Médio e adjacências, Laden é considerado um herói. O Che Guevara do Islã. Assim como o revolucionário comunista, o terrorista tem seu rosto e frases estampados em pôsteres e camisetas. Sua fama e popularidade, porém, não surgiram da noite para o dia. Laden foi ampliando sem parar seu círculo de veneradores desde 1979. Naquele ano, ele deixou a Arábia Saudita, onde gozava de confortos nababescos como integrante de uma das famílias mais ricas do país, para lutar no Afeganistão ao lado dos mujahidin, os guerrilheiros muçulmanos que combatiam os invasores soviéticos. "Osama não apenas deu seu dinheiro, como doou a si próprio. Saiu do palácio onde morava para viver com camponeses afegãos e guerreiros árabes. Cozinhava com eles, comia com eles, cavava trincheiras com eles. Esse é o seu jeito de ser", conta um ex-companheiro de batalhas do terrorista. Dono de uma fortuna pessoal hoje estimada em 270 milhões de dólares, Laden também seduzia por outros motivos. Pagava 200 dólares a cada homem que se dispusesse a lutar a seu lado, segundo disse um ex-general russo ao jornal Washington Post. No início da luta no Afeganistão, ele tinha somente 22 anos (tudo indica que nasceu mesmo em 1957). Mas seu destemor na frente de batalha, aliado à conta bancária polpuda, logo o converteu em um dos comandantes da resistência muçulmana. Ele também impressionava pela sua figura ascética – tem entre 1,92 e 1,97 metro de altura e pesa 72 quilos, segundo registra a ficha no FBI –, que emoldurava um discurso de ódio temperado com imagens poéticas e proferido sempre em voz suave. "Suas palavras soam como bons conselhos de um velho tio", compara o jornalista americano John Miller, que o entrevistou para a rede de televisão ABC. Uma das maiores glórias de Laden no Afeganistão foi, ironicamente, uma derrota. Em 1987, Laden e seus soldados penetraram na localidade de Shaban e sustentaram durante horas uma luta ferocíssima com os soviéticos. Sofreram baixas pesadas, tiveram de retirar-se, mas a ação virou um marco na história da resistência afegã. O fuzil Kalashnikov que o saudita carrega para todo lado teria sido capturado de um general russo morto em Shaban. Pelo menos essa é a versão que Laden faz questão de alardear.
Foto: AP
BIN LADEN, O VILÃO
Nos Estados Unidos, ele sucedeu a Saddam Hussein
Nos Estados Unidos, ele sucedeu a Saddam Hussein
como inimigo público número 1. Num jogo de beisebol,
um lençol estampava uma promessa de vingança:
"Osama bin Laden, churrasco na sua casa. Nós entregaremos"
Em 1989, depois que a União Soviética se retirou derrotada do Afeganistão, Osama bin Laden voltou para o país natal. Foi recebido como celebridade na Arábia Saudita governada pelo rei Fahd. Passou a falar em mesquitas e a ser recebido em encontros privados com gente graúda. Alguns de seus discursos, registra o biógrafo Yossef Bodansky, foram gravados em fitas cassete que ultrapassaram as 250.000 cópias vendidas. Em suas falas, descrevia o triunfo do Islã no Afeganistão sobre a "superpotência infiel" e exortava os sauditas a seguir fielmente os preceitos do Corão, porque tal era a condição para que a Nação Islâmica alcançasse a vitória final. O discurso de Laden ecoava o pan-islamismo, a doutrina pela qual os muçulmanos devem unir-se para libertar seus países da influência ocidental e, assim, abrir caminho para a tarefa de converter o mundo à fé islâmica. O pan-islamismo tem por base o fundamentalismo, cujas raízes remontam ao século XII. Nessa época, os califados, sentindo-se ameaçados pelas cruzadas cristãs, militarizaram-se ao extremo. E, para evitar divisões internas, impuseram a suas populações a obediência literal aos mandamentos legados pelo profeta Maomé.
Quase 800 anos depois, no início da década de 70, a extraordinária riqueza proveniente dos petrodólares fez com que muitos países islâmicos do Oriente Médio se abrissem à influência ocidental. Nesse contexto, renasceu a reação fundamentalista, da qual Osama bin Laden se transformaria em uma das expressões mais bem acabadas. Em 1989, o radicalismo do herói da campanha afegã não assustava a monarquia saudita. A família real achava que podia controlá-lo e usar a sua popularidade como um freio aos que eventualmente imaginassem que a ocidentalização poderia ir além do limite do cosmético e chegar ao campo mais profundo da política. Para incrementar a imagem de idealista, o recém-tornado Laden mudou-se para um apartamento modesto e voltou a trabalhar no conglomerado criado por seu pai, Mohamed bin Laden, que morrera pouco antes de o décimo sétimo de seus 52 filhos ir para o Afeganistão.
O SBG, Saudi Binladin Group, é um gigante que abarca um patrimônio avaliado em 5 bilhões de dólares. Atua nos ramos da construção, das telecomunicações e da informática, entre outros. Tem escritórios na França, Inglaterra, Suíça e Estados Unidos e representa várias marcas estrangeiras em seu país. Alguns produtos do grupo Disney, por exemplo, são lançados na Arábia Saudita pelo SBG. A confiança depositada pelo rei Fahd em Osama estava em parte ancorada na ótima relação que ele mantinha com os Bin Laden. Foi a casa real que, nos anos 70, incumbiu o patriarca da família de restaurar o santuário da Caaba, em Meca, o principal centro de peregrinação muçulmano. Já doente, Mohamed viu nisso um sinal divino e reaproximou-se do islamismo. O surto místico do pai calou fundo no jovem Osama, que andava influenciado pelas perorações de um professor seu na Universidade de Jidá, onde estudava engenharia. O professor se chamava Abdullah Azzam e era uma espécie de ideólogo do pan-islamismo. Quando a União Soviética invadiu o Afeganistão, Azzam interpretou o fato como um chamado de Alá, abandonou o emprego na universidade e foi lutar ao lado dos afegãos. Laden juntou-se a ele.
Foto: Divulgação
Foto: Divulgação
BIN LADEN, O RELIGIOSO
O saudita se converteu ao fundamentalismo islâmico nos anos 70.
O saudita se converteu ao fundamentalismo islâmico nos anos 70.
Marcou-o especialmente o fato de seu pai ter sido chamado para restaurar
o santuário da Caaba, em Meca, o mais importante centro de peregrinação dos muçulmanos
As divergências de Laden com o clã real saudita começaram em 1990, um ano depois de seu retorno ao país, com a invasão do Kuwait pelas tropas do iraquiano Saddam Hussein. Os governantes sauditas temiam uma agressão do Iraque e Laden ofereceu seus préstimos de guerreiro ao rei Fahd. Disse que mobilizaria os "árabes afegãos", os veteranos da guerra contra a União Soviética, em defesa da Arábia Saudita. Em troca, Osama queria a promessa do rei de que "os infiéis ocidentais" não pisariam em "solo divino". Ou seja, de que não haveria tropas americanas no país que abriga as cidades sagradas de Meca e Medina. Fahd, no entanto, ignorou a oferta. O território de seu país hospeda até hoje soldados americanos. Irritado com a decisão do rei, Laden passou à oposição. Ao mesmo tempo que criticava o Iraque pela invasão do Kuwait, ele lançava condenações à presença de forças dos Estados Unidos e de outras nações ocidentais na Arábia Saudita. Tentou orquestrar um boicote a produtos americanos. "Ao comprar bens produzidos nos Estados Unidos, nos tornamos cúmplices do assassinato dos palestinos. As companhias americanas lucram milhões no mundo árabe e, em cima desse montante, pagam impostos ao seu governo. Os Estados Unidos usam esse dinheiro para enviar 3 bilhões de dólares por ano a Israel, que os usa para matar palestinos", discursava. Como seus ataques estavam cada vez mais virulentos, Laden foi convidado a deixar o país em 1991. Sua família, ocidentalizada até o último dólar, também rompeu relações com ele. A carreira de terrorista começava ali. Sua primeira base de operações foi o Sudão, onde permaneceu por cinco anos, até ser banido por pressão americana e transferir-se para o Afeganistão. Nas montanhas afegãs, ele não dorme duas noites seguidas no mesmo lugar. Consta que entre os guarda-costas de Laden há um filho seu. O rapaz estaria encarregado de matar o pai, se este estiver na iminência de cair em mãos inimigas. O terrorista cultiva relações estreitíssimas com o regime Talibã. Uma de suas quatro esposas é filha do mulá Mohamed Omar, o misterioso governante afegão que jamais foi fotografado ou filmado. À frente da organização Al Qaeda ("A Base", em árabe), Laden opera uma rede internacional de mais de 3.000 homens dispostos a tudo, espalhados por dezenas de países ao redor do mundo. Ela se estrutura em células que mantêm relativa autonomia. De acordo com o autor Yossef Bodansky, a Al Qaeda é especialmente forte no Afeganistão, Paquistão, Sudão, Iêmen, Somália, Bósnia-Herzegóvina, Tadjiquistão, Chechênia e Albânia. Nos últimos tempos, ela viu seus tentáculos esticarem na região do Golfo Pérsico. O entusiasmo dos muçulmanos por Laden aumenta a cada ameaça ou manifestação de repúdio americanas. Foi o que se viu após os atentados em Nova York e Washington. "Com a explosão no World Trade Center, em 1993, Ramzi Yousef tornou-se uma das mais conhecidas personalidades muçulmanas. Eu o vejo como um muçulmano que defendeu o Islã da agressão americana. O mundo verá muitos jovens seguirem o caminho de Ramzi Yousef", disse Osama bin Laden em 1998, na entrevista à rede de televisão ABC. A tragédia estava mesmo anunciada.
Por: Tuany Dutra
Nenhum comentário:
Postar um comentário