CONTRA A INTOLERÂNCIA
Em Nova York, uma palestina naturalizada americana
Em Nova York, uma palestina naturalizada americana
participa de marcha em defesa dos árabes que vivem nos EUA
É milenar o hábito de estranhamento entre os homens. Indivíduos que por algum motivo destoam num grupo qualquer costumam provocar sentimentos de antipatia entre aqueles que se sentem iguais entre si – e superiores ao que lhes parece diferente. O racismo, baseado em preconceito, nasce daí. Povos mais escuros, mais pobres, menos cultos ou simplesmente de outra etnia sempre foram vítimas de desprezo irracional por parte de coletividades que se consideram superiores na comparação. Os árabes que emigram para o Ocidente enfrentam essa barreira, mas talvez nunca tenham sido tão visados devido ao estereótipo de seu sotaque, seu turbante e sua barba como depois do último dia 11, quando ocorreram ataques terroristas nos Estados Unidos. Na esteira dos atentados, o Conselho de Relações Islâmico-Americanas, um organismo com sede em Washington, registrou mais de 400 incidentes em vários Estados nos sete dias seguintes: ataques a mesquitas e livrarias, agressões físicas, ameaças de morte e carros danificados, entre os atos mais comuns cometidos. Num subúrbio de Chicago, no Estado de Illinois, cerca de 300 pessoas marcharam em direção a uma mesquita. A polícia enviou patrulhas ao local, a fim de evitar a quebradeira. Pelo menos três assassinatos, no Texas, na Califórnia e no Arizona, foram associados a gestos de vingança contra a destruição causada pelos vôos suicidas em Nova York, Washington e na Pensilvânia.
INTEGRAÇÃO RACIAL
Indianos da comunidade sikh de Los Angeles em manifestação:
Indianos da comunidade sikh de Los Angeles em manifestação:
vigília em memória das vítimas dos atentados
As manifestações de intolerância racial e religiosa chegaram a tal ponto que foi preciso o presidente George W. Bush fazer uma visita a um centro islâmico de Washington, na segunda-feira passada, para acalmar a fúria de muitos americanos. "A face do terror não é a verdadeira fé do islamismo", afirmou Bush, que cumpriu o ritual de tirar os sapatos na entrada da mesquita e chegou até a citar oCorão em seu discurso. Ele lembrou que há milhões de muçulmanos americanos – médicos, advogados, lojistas, professores, todos contribuintes que dão ajuda valiosa ao país.
A mão estendida de Bush foi um esforço positivo para conter a escalada do preconceito – essa praga que tem origens diversas e a história já se encarregou de mostrar, fartamente, que costuma terminar em tragédias de envergadura. Entre os povos primitivos, a rejeição aos indivíduos que não pertenciam a um determinado grupo nômade era uma reação instantânea à idéia de ter de dividir a comida com um estranho. Na Antiguidade, os gregos e romanos moveram guerras contra os povos que consideravam bárbaros, e o preconceito era reforçado pela relacão de dominação que vencedores exerciam sobre vencidos. Os judeus certamente são os que sofrem discriminação de cunho religioso e cultural há mais tempo – ainda no Império Romano enfrentavam aversão ao fato de ter um forte sentido de vida comunitária e fidelidade às suas tradições e costumes. Com o desenvolvimento das ciências naturais, a partir de meados do século XIX, o preconceito começou a ganhar fundamentos teóricos, particularmente com a obra do francês Joseph-Arthur, conde de Gobineau. Surge um racismo mais elaborado, que procura demonstrar a existência de raças superiores e inferiores, resultado de uma relação entre as características físicas hereditárias (cor da pele, tamanho do crânio) e os traços de caráter e de inteligência. Gobineau sustentava que a civilização européia era criação da raça ariana, da qual descendiam as aristocracias daquele continente, tema precursor do holocausto nazista um século depois.
CRIME NO ARIZONA
O indiano Harjit Sodhi (de turbante vermelho),
O indiano Harjit Sodhi (de turbante vermelho),
no posto onde o irmão Balbir foi assassinado
Embora os judeus, seguidos pelos negros, apareçam sempre como sinônimo de vítimas da discriminação, a questão é muito mais diversificada pelo mundo afora. A Conferência da Organização das Nações Unidas contra Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância, encerrada no último dia 8 em Durban, África do Sul, permitiu traçar uma panorâmica dos conflitos agudos de natureza étnica e religiosa que se espalham em dezessete regiões ao redor do mundo. Nesse painel, nada se compara aos dias macabros que viveu a Indonésia, país que abriga 300 grupos étnicos, que falam cerca de 450 línguas. Em março, os dayaks, nativos de origem malaia, percorreram os vilarejos para decepar a golpe de facão a cabeça dos adversários madureses, migrantes da ilha de Madura. O assassino bebia o sangue que escorria pelo pescoço da vítima e retirava o coração para que o resto do bando pudesse comê-lo. Isso não aconteceu há 1.000 anos na Indonésia. Ou há um século. Aconteceu neste ano. Alguns analistas sustentam que haveria uma explicação econômica na origem desse horror. Dizem eles que os madureses passaram a ter acesso a melhores empregos e terras que os dayaks e, portanto, tornaram-se objeto de ódio dos rivais. Como muitas explicações acadêmicas, esta é superficial. O que há é um primitivismo incontrolável nesse grupo que chupa sangue e come coração de gente mais competente para ganhar a vida. Na Índia o sistema de castas continua a desafiar a modernidade. Os representantes da casta mais subalterna, os dalits, são conhecidos como os "intocáveis" e continuam a não poder ser tocados fisicamente pelas castas superiores, mesmo que isso tenha sido abolido pela Constituição de 1950. Em certas cidades, eles não podem cruzar a linha divisória que os segrega do resto da população nem visitar os mesmos templos.
Os Estados Unidos estão muito longe disso, é claro. Mas o mesmo ódio à diferença está na raiz do assassinato do imigrante indiano Balbir Singh Sodhi, 49 anos, no dia 15. Ele era sócio do irmão Harjit na exploração comercial de um posto de gasolina em Phoenix, Arizona. Balbir apareceu morto por arma de fogo e o suspeito, Frank Roque, foi preso no mesmo dia, também acusado de atirar contra um libanês em outro posto de gasolina. No enterro, o irmão resumiu o clima de medo que se disseminou: "É só usar turbante e barba que muitos americanos agem como se fôssemos do grupo do Bin Laden". A rigor, o crime tinha até endereço errado: a família Sodhi não é nem árabe nem muçulmana, mas indiana da seita sikh.
Por: Tuany Dutra
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